Síndrome da talidomida - indenização por danos materiais e morais.
A talidomida é uma substância química com várias aplicações medicinais. Passou a ser usada, em fins da década de 1950, para combater o enjôo de mulheres grávidas. É derivada do ácido glutâmico e composta pela mistura equivalente de dois isômeros ópticos (mesmas propriedades químicas e físicas, mas refletem a luz de forma diferente, possuindo efeitos fisiológicos distintos): o S(-) e o R(-). O R é o responsável pelas propriedades relevantes contra o enjôo típico da gravidez.
O problema é que a Legislação, no início da comercialização do medicamento e no mundo em geral, não era tão rigorosa quanto aos testes necessários à liberação de remédios aos consumidores, pelo que os laboratórios da época, concentrando-se no isômero R, não verificaram que o S possuía efeitos teratogênicos, ou seja, levava à má-formação dos fetos, acarretando atrofia de membros.
Apenas nos idos de 1962, após o registro de milhares de casos de má-formação, é que a talidomida foi removida da lista dos remédios de uso indicado na gravidez. Trata-se de um dos maiores erros da indústria farmacêutica e dos governos, pois o medicamento foi prescrito a grávidas de vários países.
Recentemente é que a ciência conseguiu identificar o mecanismo exato de ação da talidomida nos fetos: o isômero S inativa a enzima cerebron, essencial nos primeiros meses de gravidez para a formação dos membros da criança.
Atualmente, a talidomida, observada a vedação às grávidas, é usada no tratamento de doenças como lúpus e para diminuir os riscos de rejeição em transplantes de medula. E vem sendo usada em estudos de novos tratamentos para, p.ex., o câncer.
No Brasil, houve casos de má-formação pelo uso de talidomida. Há registros de que o medicamento foi receitado a grávidas no país mesmo após a substância ter o uso vedado, internacionalmente, durante a gravidez.
Tenha-se em mente que a má-formação em questão é tida por congênita, no entanto não se trata de determinação genética pura. Houve a introdução de agente mutagênico no mercado brasileiro por omissão estatal, pelo que os danos daí oriundos devem ser indenizados pela União, a responsável pela fiscalização de medicamentos. Nesse contexto foi editada a Lei 7.070/1982, que instituiu, em seu art. 1°, o dever da União em pagar “(...) pensão especial, mensal, vitalícia e intransferível, aos portadores da deficiência física conhecida como ‘Síndrome da Talidomida’ que a requererem (...)”, a contar da data do pedido administrativo.
Essa pensão, apesar de ter o pagamento operacionalizado pelo INSS - o sucessor do INPS, não possui caráter previdenciário, mas sim indenizatório, pois cabe ao Estado omisso indenizar as vítimas da talidomida pelos danos materiais suportados do início ao fim de suas vidas. E essa natureza indenizatória é explicitada pela própria Lei 7.070/1982 que traz, no § 1º de seu art. 3º, que a percepção dos valores indenizatórios não se confunde com o recebimento de benefício previdenciário, eis que aqueles têm por causa a omissão estatal e este a perda de capacidade laboral. É que o grau de deficiência decorrente da talidomida varia, mas sempre existe o dano que deve ser indenizado por meio da pensão. E, a depender do grau das dificuldades da vítima, há margem para benefício previdenciário. Tanto é assim que a Lei determina que se há aquisição de capacidade para o trabalho após a concessão da pensão indenizatória, isto não implica em minoração desta.
Apesar de já determinado pela Lei o dever em indenizar os danos materiais, não há empecilho para que vítima da talidomida venha a processar a União, visando a indenização a ser paga de modo que não o determinado pela Lei 7.070/1982, pois não se pode olvidar que, à luz do § 6º do art. 37 da Constituição Federal de 1988, não há necessidade de lei infraconstitucional para que se configure o dever estatal em indenizar, bem como que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” – inc. XXXV do art. 5º da Constituição Federal. No entanto, a vítima deverá fazer opção por apenas uma das verbas – ver o caput do art. 3º da Lei em tela, pois o dever da União em indenizar o dano material não pode gerar dupla obrigação. Mas não confundir a indenização pelo Estado com aquela devida pelo laboratório que introduziu o medicamento no mercado brasileiro. Tais verbas são cumuláveis, pois a omissão estatal e o erro original do laboratório são distintos, ainda que o primeiro tenha perpetuado o segundo, pois a empresa farmacêutica não faz parte da Administração Pública. Assim, se “a vítima da 'Síndrome da Talidomida', que recebe pensão especial paga pelo INSS não pode cumular indenização a ser paga pela União”, “não há impedimento legal à apuração da responsabilidade dos laboratórios envolvidos” - TRF2 - AG 9702170052, 3ª T., rel. Des. Paulo Barata, DJU II 28/08/2001.
De natureza indenizatória, a pensão da Lei 7.070/1982 repele o conceito de renda tributável, pelo que não há que se falar em incidência do imposto de renda nessa verba. Nesse sentido, ver AC 200734000160217, TRF1, 8ª T., rel. Des. Fed. Maria do Carmo Cardoso, e-DJF1 09/10/2009, p. 781. Com acerto, se não há acréscimo patrimonial, é caso de não-incidência tributária – que não se confunde com isenção fiscal -, o que não precisa ser objeto de Lei, vez que decorre diretamente da sistemática tributário-constitucional. As hipóteses de isenção fiscal é que necessitam ser discriminadas legalmente. Nesse tópico específico, a Lei 11.727/2008, ao inserir o art. 4°-A na Lei 7.070/1982, isentou, expressamente, de imposto de renda a pensão sob exame. Há que se ver que, pelo há pouco exposto, a Lei disse menos do que deveria.
Noutro ponto, de trato sucessivo, a pensão da Lei 7.070/1982 não está sujeita a prazo prescricional para se ir a Juízo, ainda que se possa falar em prescrição qüinqüenal quanto aos atrasados, conforme registrado pelo Superior Tribunal de Justiça - ver REsp. 200200802335, 1ª T., rel. Min. Denise Arruda, DJU I 24/04/2006, p. 354.
Do até aqui exposto, tem-se que a Lei da década de 1980 disciplina o dever da União em indenizar os danos materiais decorrentes da síndrome da talidomida, mas nada dispõe sobre os danos morais, apesar de elementos dessa Lei terem sido usados no cálculo judicial da indenização moral: “(...) devida a indenização por danos morais, fixada em uma única vez, e paga pela União, no valor correspondente a 20 vezes o valor que cada uma das vítimas da síndrome da talidomida, nascidas entre 1966 e 1998, vem recebendo como pensão especial em razão da Lei n.º 7.070/82 (...)” – TRF3, APELREE 199961000174175, rel. Des. Fed. Roberto Haddad, DJF3 CJ2 23/04/2009, p. 513.
Há julgados que condicionam a ação por danos morais em questão a prazo prescricional: “(...) na hipótese, o autor ajuizou ação pretendendo a reparação dos danos materiais, físicos, estéticos e morais decorrentes da omissão estatal na fiscalização da utilização do medicamento Talidomida, que teria sido consumido por sua mãe durante sua gestação, causando-lhe, no autor, graves deformidades físicas, além de problemas cardíacos e de visão. O prazo prescricional contra a Fazenda Pública, mesmo em ações indenizatórias, rege-se pelo Decreto 20.910/32. Tendo, o autor, nascido em 26/12/1957 e, portanto, completado 16 anos em 26/12/1973, quando passou a ser relativamente capaz, a partir desta data se iniciou o transcurso do lapso prescricional, razão pela qual a pretensão já se encontrava prescrita quando do ajuizamento da demanda, em janeiro de 2004. Precedentes. Recurso improvido (...)” – TRF2 - AC 200451100001893, 8ª T. E., rel. Des. Fed. Maria Alice Paim Lyard, DJU II 23/04/2009, p. 19.
Porém, há posição jurisprudencial que conecta o prejuízo moral das vítimas da talidomida aos direitos de personalidade, imprescritíveis, bem como ao próprio direito à vida: “(...) No que diz respeito à prescrição, precedentes desta Corte e do Superior Tribunal de Justiça assentaram a imprescritibilidade dos denominados ‘direitos da personalidade‘, como no caso de danos morais por violação de direitos humanos. (...) A grave omissão do Estado em zelar pela saúde dos seus cidadãos, como no caso em julgamento, compromete seriamente o seu direito à vida plena, de forma violar o inciso III da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), segundo o qual toda pessoa tem o direito à vida. (...) As deformações e limitações produzidas pelo uso inadequado da Talidomida, sem dúvida alguma, afetam seriamente os direitos da personalidade, cuja reparação goza da imprescritibilidade. (...) Desta maneira, fica afastada a alegação de prescrição, não se aplicando as disposições do Decreto 20.910/32. (...) Existem evidências de que, nas décadas de 1950 e 1960, as autoridades do Ministério da Saúde demoraram a proibir o uso deste medicamento, mesmo quando já eram amplamente conhecidos os seus efeitos teratogênicos. (...) Fica evidente que houve falha (‘faute du service’) das autoridades sanitárias ao não impedirem que a Talidomida fosse comercializada no Brasil até o ano de 1965, quando seus efeitos nefastos sobre os fetos já eram conhecidos da comunidade científica mundial, acarretando, em conseqüência, a responsabilidade pela indenização por dano moral às suas vítimas. (...) É inarredável que as deformações provocadas por referido medicamento limitam enormemente a vida das suas vítimas, além de expô-las a constrangimentos no seu cotidiano, suscitando o direito à indenização por danos morais, independentemente da percepção da pensão especial da Lei 7.070/82 (...)” - TRF3 - APELREE 200261000287967, 3ª T., rel. Des. Fed. Rubens Calixto, DJF3 CJ1 21/07/2009, p. 73.
Em 2010 foi editada a Lei 12.190, que traz o dever da União em indenizar o dano moral decorrente da síndrome da talidomida. Essa indenização deve ser paga em uma única parcela de cinqüenta mil reais, podendo ser aumentada de acordo com o grau de má-formação. Essa Lei teve o cuidado de explicitar que sobre essa verba não incide imposto de renda o que se mostra dentro da boa técnica jurídica, já que não é hipótese de isenção tributária e sim de não-incidência. Ainda, traz que é cumulável com a pensão vitalícia da Lei 7.070/1982, o que se mostra coerente, pois uma visa a indenizar os danos materiais, a outra, os morais. E essa Lei de 2010, em seu art. 5º, dispõe que nada impede que a parte vá a Juízo contra a União, pleitear indenização por danos morais a ser calculada de forma diversa da legalmente prevista, desde que opte por uma das verbas, em face da vedação à já referida dupla obrigação. Essa previsão legal de busca ao Judiciário, em verdade, apenas veicula o óbvio decorrente do inc. XXXV do art. 5º e do § 6° do art. 37 da Constituição Federal. E a vítima pode mover ação por danos morais contra o laboratório responsável pelo erro farmacêutico, sendo a indenização daí decorrente cumulável com a paga pela União, nos mesmos termos acima expostos.
Importa destacar que a Lei 12.910/2010 não fala, sequer, em prazo para requerimento administrativo. Apenas dispõe, no caput de seu art. 1º, que “é concedida indenização por dano moral às pessoas com deficiência física decorrente do uso da talidomida, que consistirá no pagamento de valor único igual a R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais), multiplicado pelo número dos pontos indicadores da natureza e do grau da dependência resultante da deformidade física (§1º do art. 1º da Lei no 7.070, de 20 de dezembro de 1982)” - destacou-se. Assim, s.m.j., quanto à indenização delineada pela Lei 12.910, não há que se falar em prescrição administrativa - que não se confunde com a prescrição judicial, ou seja, não há prazo para que a vítima procure a Administração, pois esta é que, imperativamente, deve pagar a indenização. E ainda que a Lei traga que produz efeitos financeiros a contar de 1º de janeiro de 2010, tal data deve ser considerada como o marco, do ponto de vista da disponibilidade de recursos, para a União poder começar a pagar o devido e não como início de contagem de lapso prescricional, administrativo ou judicial. Por conseguinte, com base na sistemática da própria Lei, se a vítima preferir acionar a União judicialmente, não aceitando a indenização ex legis por danos morais, não há que se falar em prazo prescricional correndo contra o direito de ação, mormente quando se está diante de pretensão imprescritível, referente aos direitos de personalidade e ao à vida, conforme já se disse.
E nada impede que se leve ao Judiciário insatisfação quanto à aplicação dos critérios de cálculo da indenização por danos morais da Lei de 2010, os do § 1º do art. 1° da Lei de 1982.
Questão interessante, que poderá surgir nos Tribunais, será a referente às situações em que a União já tenha sido obrigada judicialmente a indenizar os danos morais antes da edição da Lei 12.910/2010, mas em quantum inferior ao piso da novel Lei. Nesses casos, há que se responder se o art. 5º da Lei 12.910/2010 - “a indenização por danos morais de que trata esta Lei, ressalvado o direito de opção, não é acumulável com qualquer outra da mesma natureza concedida por decisão judicial” constituir-se-ia, ou não, em óbice a pleito de complementação judicial.
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